“Não julguem os estivadores quando só sabem metade da história”, por Erica Nunes

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Escrevo esta carta como mulher de estivador há nove anos.

Estes estivadores, rotulados a maioria das vezes como malandros, marginais, brutamontes e muitas outras coisas que nem vale a pena frisar, têm por trás uma família e filhos e é por isso que lutam.

O problema aqui é que as pessoas não sabem quanto é difícil ser estivador, não sabem de quanto eles abdicam para trazer um salário no final do mês. Estes homens trabalham muitas vezes 24 horas sobre 24 h sob chuva, frio, vento, sol, calor e com más condições de trabalho. A cada dia que se apresentam para trabalhar põem em risco a própria vida.

Têm um trabalho duro a nível físico e psicológico, um trabalho muito perigoso. Estes homens vestem a camisola por aquilo que fazem, mas para isso deixam de ter vida familiar. E é aqui que eu e as minhas filhas entramos. Com os horários rotativos, carga horária elevada e sem poder recusar turnos extras com receio de punições, a família passa automaticamente para segundo plano. Eu tive de abdicar da minha vida profissional para conseguir acompanhar as minhas filhas. Sou mãe e pai ao mesmo tempo e ainda tenho às minhas costas tudo o que implica ter filhos e uma casa. Aqui não se dividem tarefas: sou só eu e as minhas filhas porque ele tem de trabalhar. É difícil gerir tudo sozinha. Ele é o sustento desta família, é o nosso pilar, e a sua ausência é muito sentida, especialmente pelas nossas filhas, isto para não falar dos abanões que o nosso casamento leva.

Ele está dias e dias sem ver as filhas acordadas, são muito poucas as vezes que se senta à mesa para uma refeição em família, são raríssimos os momentos de brincadeiras entre pai e filhas. O pouco tempo livre que tem aproveita-o para repor horas de sono e tentar descansar. É um pai muito ausente: falta a festas na escola, não vai ver o sarau de ballet, não vai pôr nem buscar a filha à escola, não ajuda nos trabalhos de casa, não dá banho e tantas outras coisas porque pura e simplesmente não está presente. O facto de ser estivador não lhe permite ser diferente. E como ele gostava que fosse diferente, nós gostávamos que fosse diferente! Custa muito ter de ouvir constantemente a minha filha de apenas seis anos perguntar: “O pai hoje vem de dia ou de noite?” “O pai hoje vem para casa?” “Por que é que o pai nunca vai à minha escola?” “Tenho saudades do papá, tenho saudades dos abraços e dos beijinhos dele”.

Ao crescer, a nossa filha foi-se apercebendo e habituando a que o pai não podia estar, já é ela que muitas vezes responde: “O meu pai não pode, tem de trabalhar, vou só eu, a mãe e a mana”, ou por exemplo, quando lhe perguntam na escola como foi o fim de semana e ela nunca inclui o pai.

Nos raros momentos que ele consegue estar em casa, os olhos da minha filha brilham. Para ela, o pai estar em casa é melhor do que dar-lhe um brinquedo novo.
Lembro-me de ter a nossa filha internada… E ele esteve quatro dias sem nos ir visitar ao hospital, eu já não tinha respostas para dar à miúda, engolia em seco e dizia: tem de trabalhar, filha, para poderes ter uma casa e comidinha na mesa.

Isto é viver?! Não, não é viver. É sobreviver.

Esta miúda tem apenas seis anos e tem tanta noção do que se passa… Não pede nada sem primeiro perguntar: “Tens dinheiro para comprar mamã?” ou “O pai já recebeu?” Ela não tem de estar a viver isto com esta intensidade, só tem de ser criança e ser feliz.
O patronato faz pressão psicológica e estes homens acabam por descarregar em casa, naqueles que lhes são mais próximos. Nós, mulheres de estivadores, não temos uma vida facilitada. Eles não ganham assim tão bem como se diz, quando são os únicos a trazer dinheiro para casa.

Tenho o meu marido em casa desde Novembro de 2015 com baixa psicológica. Elas não matam, mas moem, e eles começam a cair. Está a tornar-se insustentável esta situação.
Eles só querem poder trabalhar com dignidade e chegar ao final do mês e receber o ordenado a que têm direito, para pagar contas. Não querem andar a pedir esmolas, querem poder deitar a cabeça na almofada e saber que no final do mês não devem nada a ninguém. Querem poder dar o melhor às suas famílias, aos seus filhos. Quem não quer?
Os estivadores, afinal, não são assim tão malandros, só tentam defender o seu posto de trabalho e assegurar a sustentabilidade das suas famílias. E quem não faria o mesmo no lugar deles?

Não julguem os estivadores quando só sabem metade da história. Aqui ninguém quer ser coitadinho, só queremos que as pessoas saibam toda a verdade. Como em tantos outros trabalhos e empresas, por trás de um estivador está uma família que depende única e exclusivamente dele, do seu trabalho.

Como mulher de estivador tenho muito orgulho nesta família que é a estiva. Unidos somos mais fortes.

Autor: Há Flores no Cais

Blogue das mulheres dos Estivadores

19 comentários em ““Não julguem os estivadores quando só sabem metade da história”, por Erica Nunes”

  1. Realmente, näo é viver. É sobreviver. É triste que alguém tenha de trabalhar tanto, e no final do mês, nem sequer seja compensado de forma adequada. É a realidade de PT: quem mais trabalha, é quem menos recebe.

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  2. Muito importante esta vossa opção de fazer chegar aos outros o que se passa com os estivadores e seus problemas com o patronato. Habitualmente só ouvimos um lado.
    A minha solidariedade e os maiores sucessos para todos.
    Maria

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  3. Mas na net circulavam renumeraçôes de 5000 euros. E diziam que só pode trabalhar quem está no sindicato. Até falavam no filme há lodo no cais.
    Eu lembro-me de assistir à descarga de cimento no terminal da Cecil. Quem fazia a descarga era um trabalhador da Secil, mas tinha que estar lá, a ver passar os peixes, a equipe da estiva.
    Será ainda assim?

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    1. Princesa, tenta casar com um jornalista.
      Horários rotativos, isenção de horário e ainda a diferença de que a maioria dos jornalistas menores de 35 anos o que levam para casa ronda (com sorte) os 900€.
      O meu marido chega a casa todos os dias às 2:30 am e tem 8-15 fins de semana livres por ano.
      É presisamente por querer manter o privilégio de ganhar uma pipa de massa a fazer horas extra como loucos que os estivadores estão onde estão, e não percebo porque os seus filhos vem tão pouco o pai….será fura-greves? Porque não sendo fura greves então só trabalhou uma centena ou duas de suas desde há 5 anos….
      Pelo amor da santa, cantiga de coitadinhos não.

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  4. A estes homens e às suas famílias deixo a minha solidariedade. Para aqueles que que falam mal deles, sem saber o que dizem, deixo a minha tristeza.

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  5. A minha solidariedade para com estes homens que como tantos outros por esse mundo fora lutam diariamente para que com o seu suor fazer chegar o pão á mesa das suas Famílias, o que infelizmente nem sempre é possível pois os lobos (patrões e gestores) vem de noite e comem tudo – o pão dos nossos filhos, o nosso suor e bebem até o nosso sangue!!! Coragem e muita FORÇA!

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  6. Tenho 60 anos, sou enfermeiro, também trabalho por turnos e aos fins de semana, para alem do curso geral obrigaram-me a fazer uma licenciatura, sou funcionário público, estou nos cornos do touro e levo para casa menos de mil euros e, outra coisa, não posso fazer greve, trabalho com pessoas e recebo esta miséria.

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    1. Sr. Rui Fonseca, só não faz greve se não quiser…esse direito existe. É lamentável fazer do seu infortúnio arma de arremesso perante quem só “cometeu o crime” de lutar pelos seus direitos utilizando processo legal. Levante-se e faça o mesmo!

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    2. Sr. Rui Fonseca, não utilize o seu infortúnio perante quem só “comete o crime” de lutar pelos seus direitos através de processo legal. Fica-lhe mal mentir. Tem exatamente o mesmo direito à greve. Levante-se, ninguém o fará por si!

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  7. Os estivadores têm um poder reivindicativo que outras profissões não têm por exemplo quem trabalha a dias nas limpezas por isso sabem que fazendo greve paralisam o país ,e fazem pressão ,mas estão no direito de lutarem pelos seus direitos mas não devem ser chantagistas….afinal digam a verdade quanto ganham ao fim do mês em média com e sem horas extras……….a verdade deve ser total ….para ambas as partes

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  8. Sr José Manoel.
    É muito fácil falar, provavelmente enquadra-se em um meio de trabalho bastante favorável para poder proferir tais apalavras.
    É isso que qualquer capitalista quer, retirar mão de obra especializada e em seu lugar por precários.
    Muita gente diz ( por este ordenado eu trabalharia o dobro), mentira.Trabalharia por pouco tempo, ninguém consegue sujeitar-se por muito tempo a carga extrema de trabalho por pouco dinheiro, acredite, o Sr não sabe o que diz.Estes homens conquistaram com muita luta e sofrimento o seu posto de trabalho.O Sr fugiria a guerra ou lutaria pelo eu país?! Parece que fugiria…

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  9. Da parte que me toca, só me falta dizer que os estivadores usam farda como os agentes de segurança. Quero com isto dizer, que corroboro na integra o descrito na carta, nós agentes de autoridade sentimos precisamente o mesmo, com a diferença de que ganhamos bem menos. Na nossa sociedade, enquanto os valores do dinheiro estiverem na frente das armas, não há guerra que resista.
    E não vale a pena (nós) agentes e outros, partir para greves ou coisa que o valha, porque não é assim que o País segue em frente, e mudar de rumo, também não, porque todos somos vocacionados para fazer algo na vida, pra isso estudamos e nos formamos para fazer aquilo que temos de melhor. Cada um na sua e chegar ao fim de uma carreira e ter de mudar de oficio é um fracasso.

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  10. Nos últimos anos os funcionários públicos foram obrigados a trabalhar mais horas por menos dinheiro e perderam direitos adquiridos ou privilégios conforme o angulo em que se espreita. Eu como enfermeiro trabalho em condições idênticas ou piores conforme a óptica de quem observa e com muito mais stress, exigência profissional e muito mais formação. Os estivadores e seus familiares compreenderam a minha situação? Não senti. Agora querem que eu compreenda a vossa. Os nossos políticos puseram-nos todos uns contra os outros . Cada um puxa a brasa á sua sardinha. Vamos apagar o lume todo e ninguém vai comer sardinha assada. Não sei se era isto que queriam, mas foi o que conseguiram. Quando já ninguém conseguir brasa, talvez se comece de novo a construir uma sociedade mais solidaria. Até lá podem contar da minha parte com a compreensão e solidariedade que eu tenho recebido.

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